Ralf Dahrendorf: um germano-britânico invulgar, por *João Carlos Espada.

Ralf Dahrendorf: um germano-britânico invulgar.

Ideólogos de obediências várias desprezaram o posicionamento intelectual de Dahrendorf, acusando-o de contraditório. Mas talvez esse posicionamento contraditório seja característico do “mistério inglês” Ralf Dahrendorf doutorou-se em Folosofia na Universidade de Hamburgo.
Ralf Dahrendorf nasceu a 1 de Maio de 1929 em Hamburgo, a cidade mais inglesa da Alemanha, como ele próprio gosta de recordar. Também os seus pais nasceram em Hamburgo e os avós, maternos e paternos, foram para Hamburgo vindos de Anglia – esse território muito desejado entre a Alemanha e a Dinamarca de onde terão partido os Anglo-Saxões rumo às ilhas Britânicas. Em meados de 1920, aquela que viria a ser a mãe de Dahrendorf preparava cuidadosamente uma primeira visita a Inglaterra. No último minuto, todavia, uma doença súbita impediu-a de concretizar a viagem e levou-a a ficar numa pequena localidade perto de Hamburgo, conhecida como Hostein Switzerland, onde conheceu o futuro marido, Gustav Dahrendorf. Ambos eram admiradores da Inglaterra e ambos decidiram – como modesto substituto da viagem falhada – que dariam aos filhos nomes que pudessem ser igualmente usados na Alemanha e em Inglaterra. Daí os nomes Ralf – que se escreve, à alemã, com f, e não com ph – e Frank, o nome do irmão de Ralf Dahrendorf.

Dois Totalitarismos. Gustav Dahrendorf foi líder do Partido Social-Democrata durante a República de Weimar e exerceu actividade política ao longo de toda a vida. Participou na resistência ao nazismo e foi preso em 1933, depois em 1938, e novamente a 20 de Julho de 1944, data da tentativa de assassinato de Hitler. Em Novembro de 1944, com 15 anos, Ralf Dahrendorf foi preso pela Gestapo e enviado para um campo de concentração, de onde foi libertado em 1945, no dia em que as tropas soviéticas chegaram. No ano seguinte, em 1946, o pai do jovem Ralf viria de novo a ser quase preso na Alemanha de Leste, desta vez pelos comunistas, por se recusar a participar nas chamadas negociações com vista à unificação forçada do Partido Social-Democrata com o Partido Comunista. Esta dupla experiência do totalitarismo – nazi e comunista – e da resistência contra eles fundaram o comprometimento de Dahrendorf com a causa da liberdade e preveniram–no contra as seduções ideológicas: “Sou kantiano, ou, se preferirem, popperiano, o que equivale a dizer que, para mim, um dos aspectos fundamentais da vida humana é que o homem não pode responder a todas as questões. Se alguém quer conhecer a resposta, deve poder duvidar do que dizem. Vivemos numa condição fundamental de incerteza [...] e isso deriva do facto de nenhum homem ser Deus” ["O Liberalismo e a Europa: Entrevista com Vicenzo Ferrari", Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 13-14].

Liberdade e Lei - Outra experiência desta mesma época marcaria o jovem Dahrendorf. Nos dias que se seguiram à derrocada do regime nazi, e antes que novas instituições tivessem sido criadas, o caos invadiu as ruas. Isto levou Dahrendorf a observar que não existe liberdade sem lei, sem regras e sem instituições capazes de aplicar essas regras. Num livro que publicou décadas depois, já nos anos 80, intitulado “Law and Order”, Dahrendorf escreveria que o sonho rousseauísta de um mundo sem constrangimentos é o caminho mais curto para o pesadelo hobbesiano do Leviatã, o Estado todo- -poderoso. Também num livro ulterior (“After 1989: Morals, Revolution and Civil Society”, 1997) Dahrendorf regressa a este tema que é particularmente impopular entre os intelectuais liberais dos nossos dias: a crítica do igualitarismo e do relativismo. Nele Dahrendorf descreve uma “concepção extraviada de democracia”: “Pensa-se que os valores “emergem” de uma ou de outra forma, ao libertar as pessoas de restrições, encorajando-as a revelarem o que de melhor possuem em si, juntando-as para que comuniquem. De algum modo, a verdade, a bondade e a beleza surgirão, como géiseres no solo da Islândia. Isto é de Habermas (ainda que caricaturado) e, antes deste, de Rousseau. Mas está errado… A abordagem do “porque não?” relativamente ao que as pessoas fazem, dizem, querem e parecem traduz–se numa aproximação da anomia, a ausência de regras. Contudo, a anomia, tal como a entropia, em última análise conduz à morte.”

Sociologia e Conflito -  Em 1952, Dahrendorf partia para Inglaterra, para a London School of Economics, onde faria o seu segundo doutoramento, desta vez em Sociologia, depois de se ter licenciado e doutorado em Filosofia na Universidade de Hamburgo. Após o doutoramento na LSE, Dahrendorf ingressou no Instituto de Investigações Sociais de Frankfurt, dirigido pelos neomarxistas da chamada escola crítica de Max Horkheimer e Theodor Adorno. “Fiquei lá exactamente oito semanas”, explica Dahrendorf. “Depois das primeiras quatro compreendi que reinava uma atmosfera opressiva e autoritária que não me agradava.” Em 1959 é publicado o seu clássico “Class and Class Conflict in Industrial Societies”, no qual Dahrendorf revê criticamente as principais teorias de estratificação social e desenvolve a sua própria perspectiva, que ficaria conhecida como “sociologia do conflito”. São as seguintes as palavras finais do livro: “O monismo totalitário baseia-se na ideia de que o conflito pode e deve ser eliminado, de que uma ordem social e política homogênea e uniforme é a situação desejável. Essa ideia é tão perigosa quanto errônea nas suas premissas sociológicas. Pelo contrário, o pluralismo das sociedades livres baseia-se no reconhecimento e na aceitação do conflito social.

Europeísta Céptico -  Entre 1967 e 1969, Dahrendorf lidera a renovação do Partido Liberal alemão, que culminaria na coligação entre liberais e social-democratas, o célebre governo Willy Brandt-Walter Scheel, de que Dahrendorf fez parte como ministro dos Assuntos Parlamentares. Em 1970 Ralf Dahrendorf foi nomeado comissário alemão na Comissão Europeia, em Bruxelas, onde participou activamente nas negociações de adesão da Inglaterra, mas da qual se afastou em 1974, desapontado com a ausência de accountability nas estruturas supranacionais da Comunidade Europeia. Dahrendorf foi sempre um europeísta convicto, mas um europeísta de tipo especial, céptico relativamente aos grandes projectos federadores e à subestimação das realidades profundas do Estado-nação. Acima de tudo, é um internacionalista multilateral. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, tornar-se-ia um empenhado defensor da prioridade do alargamento da União Europeia aos países recém-libertados das ditaduras comunistas.

Regresso à Inglaterra -  Depois de se demitir da Comissão Europeia, Dahrendorf foi convidado para reitor da London School of Economics. Dirigiu-a nos anos difíceis de 1974 a 1984, restituindo-lhe o prestígio de épocas passadas. A nobre instituição ficou-lhe grata e no 100.o aniversário convidou Dahrendorf para escrever a história dos primeiros cem anos. O resultado é um magnífico volume de 584 páginas, editado pela Oxford University Press em 1995. Oxford seria o destino seguinte de Ralf Dahrendorf, que, entretanto, fora agraciado pela rainha de Inglaterra com um título em 1981. Em 1987, após dez anos à frente da LSE, Dahrendorf tomaria o posto de warden do St Antony's College, na Universidade de Oxford, por mais dez anos, até Julho de 1997. Em 1998, Dahrendorf adoptaria a cidadania britânica, passando a poder ser tratado pelo título de Sir. Em 1994, Sir Ralf ingressaria na Câmara dos Lordes como Lorde Dahrendorf of Clare Market in the City of Westminster. Foi aí que dirigiu o célebre comité sobre “Wealth creation and social cohesion in a free society”, do qual foi publicado em 1995 um relatório que muito terá inspirado o programa do New Labour de Tony Blair.

Dahrendorf e Burke - Uma excelente introdução à obra de Dahrendorf pode ser encontrada no seu livro de 1997, intitulado “After 1989: Morals, Revolution and Civil Society”. O primeiro ensaio, “As revoluções devem fracassar?”, é uma crítica elegante ao utopismo revolucionário e uma defesa da tradição anglo-americana das “revoluções relutantes” (1688 e 1776), por oposição à revolução utópica ocorrida em França em 1789. Neste capítulo é estabelecido o tom do “liberalismo especial” de Dahrendorf: aberto à mudança, mas respeitador da tradição; a favor da escolha individual, mas contra o individualismo desbragado; firmemente do lado dos mercados livres e da propriedade privada, mas oposto à destruição do “terceiro sector”, que o autor encara como indispensável a uma sociedade civil forte. Dahrendorf apresenta-se como “um intelectual que continua a querer convencer os outros da “singularidade da verdade”, sem confiar em ninguém que afirme possuí-la” (p. 112): “Falar da singularidade da verdade é uma outra forma de afirmar que existem princípios universais, não apenas no que respeita ao conhecimento mas também em relação à moral. Não poderemos nunca, contudo, ter a certeza de os haver encontrado. Por conseguinte, devemos ser tão cautelosos relativamente ao dogmatismo fundamentalista como em relação à libertinagem dos relativistas.” (p. 122) Ideólogos de obediências várias desprezaram o posicionamento intelectual de Dahrendorf, acusando-o de contraditório.
Mas talvez esse posicionamento seja uma expressão do “mistério inglês”. Talvez ele revele a profunda sabedoria de um gentleman britânico de origem alemã, cujo sentido de equilíbrio e moderação está bem ilustrado na famosa frase de Edmund Burke, que Dahrendorf cita no final do livro de 1990, “Reflexões sobre a Revolução na Europa”: “Tenho pouco para recomendar as minhas opiniões, excepto que se baseiam em observação demorada e muita imparcialidade. Vêm de alguém que dedicou quase toda a sua vida pública à defesa da liberdade dos outros. Alguém que, quando o equilíbrio da embarcação em que viaja se encontra ameaçado por sobrecarga de um dos lados, procura transportar o pequeno peso dos seus argumentos para o lado que possa preservar o equilíbrio.

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*João Carlos Mosqueiro Mendes Espada (n. 1955) é professor universitário, director do Instituto de Estudos Políticos - Universidade Católica Portuguesa, Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas e Professor Convidado da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais daquela Universidade. É doutorado em Ciência Política na Universidade de Oxford (1990-1994), onde foi orientado por Ralf Dahrendorf.