A Democracia face ao equívoco relativista, por *João Carlos Espada.

Foi o abandono dos princípios morais que gerou os poderes arbitrários sem limites Discutimos nos dois últimos ensaios os contornos políticos da democracia. Vimos que assentam no governo representativo limitado pela lei e que se distinguem de dois tipos de regimes rivais. Por um lado, as democracias distinguem-se de todo e qualquer regime vanguardista (de esquerda ou de direita) em que os governantes não prestam contas aos cidadãos. Por outro lado, distinguem-se dos regimes (mais uma vez, de esquerda ou de direita) que se reclamem da chamada soberania popular.Cabe-nos agora discutir se existe ou não um fundamento moral para as democracias liberais, tais como as descrevemos aqui com base nas obras dos autores que examinámos.

Relativismo democrático?  Muitos comentadores têm tendência a identificar a humildade e o cepticismo intelectuais dos autores tratados ao longo destes ensaios com uma espécie de relativismo moral. Segundo esse ponto de vista, a democracia liberal distinguir-se-ia dos totalitarismos do século 20 precisamente por não abraçar qualquer moral particular enquanto “verdadeira”. Os totalitarismos, pelo contrário, reclamariam para a sua “moral” o estatuto de única verdadeira – e por isso perseguiam os que não concordavam com ela. Existe, à primeira vista, alguma plausibilidade neste argumento. No entanto, ele dificilmente resiste a uma reflexão mais prolongada. O que caracterizou os totalitarismos do século 20, quer no plano intelectual quer no plano da acção política, foi precisamente a revolta contra todos os limites morais absolutos e interpessoais ao exercício da vontade revolucionária. Por outras palavras, o colapso da liberdade deveu-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. E os autores que estudámos tiveram clara consciência disso mesmo, embora muitos comentadores tendam a não se aperceber desse aspecto crucial.

Absoluto Moroal -  Isaiah Berlin, por exemplo, é muitas vezes apresentado como o símbolo da recusa de quaisquer princípios morais absolutos e da defesa de um total pluralismo de valores, que seriam absolutamente incomensuráveis entre si. No entanto, no seu mais célebre ensaio, “Dois conceitos de liberdade”, Berlin faz expressa e repetida referência à necessidade de um absoluto moral como trincheira contra a tirania: “Se eu quiser preservar a minha liberdade [?] Tenho de criar uma sociedade em que existam certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor. Podem ser atribuídos diferentes nomes ou naturezas às regras que determinam essas fronteiras: direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural ou as exigências da utilidade ou dos “interesses permanentes do homem”; posso acreditar que são válidas a priori ou reivindicá-las como os meus propósitos essenciais, ou da minha sociedade, ou cultura. (?) A crença genuína na inviolabilidade de uma área mínima de liberdade individual implica uma posição absoluta.”

Barreiras Absolutas -  E Isaiah Berlin acrescenta: “Para Constant, Mill e Tocqueville e para a tradição moral em que se inserem, nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos, e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente; e, segundo, que existem fronteiras, não artificialmente traçadas, dentro das quais os homens devem ser invioláveis.” Por fim escreveu: “E são regras como estas que são violadas sempre que uma pessoa é declarada culpada sem julgamento, ou punida com uma lei retroactiva; sempre que os filhos são forçados a denunciar os pais, os amigos a traírem os amigos, os soldados a usarem métodos bárbaros; sempre que os homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas porque provocam a irritação de uma maioria ou de um tirano. Tais actos, ainda que legalizados pelo soberano, causam horror mesmo nos dias de hoje, e isso resulta do reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas – à imposição da vontade de um homem a um outro.”

Vontade sem Entrave -  Isaiah Berlin captou de forma extraordinariamente certeira um dos segredos do totalitarismo do século XX: a sua revolta contra o “reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas à imposição da vontade de um homem a um outro”. A isto temos chamado ditadura da vontade sem entrave. Observámos que essa ditadura foi possível, em primeiro lugar, porque a ideia de governo limitado fora abandonada. Verificamos agora que Isaiah Berlin afirma que a possibilidade de um governo ilimitado ou sem entraves resulta do abandono do reconhecimento da validade moral de algumas barreiras absolutas. Não deixa de ser curioso notar que Hayek afirmou precisamente o mesmo: “Um sistema desse tipo (de liberdade) terá possibilidades de ser alcançado e mantido apenas se toda a autoridade, incluindo a da maioria, for limitada no exercício do poder coercivo por princípios gerais com os quais a comunidade se tenha identificado. A liberdade individual, onde quer que tenha existido, tem sido sempre produto de um respeito dominante por esses princípios, os quais, no entanto, nunca foram completamente articulados em documentos constitucionais.”

Positivismo e Arbitrariedade - Mais adiante, Hayek considera que foi o alastramento do positivismo que conduziu ao abandono do respeito por esses princípios: “É apenas demasiado verdade, como reconheceram não apenas opositores do positivismo como Emil Brunner, mas no fim até positivistas de toda a vida como Gustav Radbruch, que foi a prevalência do positivismo que tornou indefesos os guardiões da lei contra os novos avanços do governo arbitrário”. Finalmente, Hayek reforça a sua crítica ao positivismo citando Emil Brunner: “O Estado totalitário é simplesmente e somente o positivismo legal em prática política”.

Positivismo e Marxismo - É importante notar que também Karl Popper acusou o positivismo de estar associado ao crescimento do totalitarismo e ao abatimento das fronteiras morais que limitavam o exercício do poder arbitrário. No seu famoso “esforço de guerra”, “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”, Popper caracterizou o positivismo ético como a atitude que “partilha com o naturalismo ético a crença em que devemos tentar reduzir normas a factos. Mas os factos são desta vez factos sociológicos, designadamente, as normas realmente existentes. O positivismo mantém que não há outras normas que não sejam as leis que foram feitas e que por isso têm existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação. As leis realmente existentes são consideradas como os únicos possíveis padrões de bem: o que é, é bom. (a força é o direito).” Karl Popper considerou que esta forma de positivismo ético (denunciada por ele em Hegel) foi levada ao extremo pelo historicismo marxista: “Em capítulos anteriores, fiz referência ao positivismo moral (especialmente o de Hegel), a teoria de que não há qualquer outro padrão moral a não ser aquele que existe; aquilo que é, é razoável e bom; portanto, a força é o direito. O aspecto prático desta teoria é este: uma crítica moral de um estado de coisas actual torna-se impossível, uma vez que é esse próprio estado de coisas que determina o padrão moral das coisas. Ora a teoria moral historicista que estamos a considerar (de Marx) nada mais é do que uma outra forma de positivismo moral.”

Pensamento Alemão -  Isto significa que, para Popper, o historicismo é apenas uma forma do positivismo moral que ele e Hayek consideraram responsável pelo abandono dos princípios morais. E foi este abandono dos princípios morais que ambos, juntamente com Isaiah Berlin, apontaram como geradores do poder arbitrário sem limites. Ora foi precisamente este fenómeno que também Leo Strauss apontou, em 1950, como gerador do totalitarismo moderno: “Ao abandonar a ideia de direito natural, o pensamento alemão criou o “sentido histórico” e assim foi conduzido no final ao relativismo total. O que era uma descrição toleravelmente exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos parece agora aplicar-se ao pensamento ocidental no seu conjunto. Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privou os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória por meio da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento.”

Crise da Modernidade - Para Strauss, o relativismo estivera na base do fenómeno totalitário que fora derrubado pelas democracias ocidentais. Mas, no plano puramente intelectual, o relativismo sobrevivera à derrota do totalitarismo e dominava a atmosfera intelectual e moral das democracias. O triunfo do relativismo era, para Strauss, a origem daquilo que designou por crise da cultura ocidental moderna: “A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno já não sabe aquilo que quer – já não acredita que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até algumas gerações atrás, era geralmente aceite que o homem pode saber o que é certo e errado, qual é a ordem de sociedade justa, ou boa ou melhor – numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo, essa fé perdeu o seu poder.”
O racionalismo dogmático na origem do dogmatismo relativista Como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves? Oakeshott atribuiu a Descartes (e a Bacon) a origem do racionalismo dogmático No sábado passado discutimos os fundamentos morais da democracia liberal. Observámos que os totalitarismos do século 20, da esquerda e da direita, se caracterizaram pela revolta contra todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionária.Por outras palavras, o colapso da liberdade ficou a dever-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. Por outras palavras ainda, o colapso da liberdade ficou a dever-se ao triunfo intelectual e moral do relativismo.

Pergunta Crucial -  A pergunta que decorre daqui é incontornável: como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves? Os autores que discutimos ao longo destes ensaios sugerem uma resposta inesperada a esta pergunta crucial: eles sugerem que foi o racionalismo dogmático que gerou o relativismo. Mas não contrapõem ao racionalismo dogmático qualquer forma de irracionalismo. Eles sustentam um outro tipo de racionalismo, a que podemos chamar crítico, ou falibilista. Esta é uma longa história de que aqui podemos dar apenas um breve apanhado.

Racionalismo Dogmático -  Karl Popper atribuiu importância decisiva à distinção entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático, “compreensivo” (no sentido de abrangente), ou total. Apresentando-se como um racionalista de tipo especial, ou seja, como um racionalista crítico, Popper condenou a presunção do racionalismo dogmático: “Podemos descrever o racionalismo acrítico ou dogmático como a atitude da pessoa que diz: ?Não estou disposto a aceitar nada que não possa ser defendido com base em argumentos ou na experiência?. Podemos expressar esta ideia também sob a forma do princípio de que qualquer pressuposto que não seja confirmado por argumentos ou pela experiência deve ser rejeitado. Ora, é fácil ver que este princípio do racionalismo acrítico carece de coerência, pois, como não pode, por seu turno, ser confirmado por argumentos ou pela experiência, implica que ele próprio deve ser rejeitado. (Assemelha-se ao paradoxo do mentiroso, ou seja, a uma frase que afirma a sua própria falsidade.) O racionalismo acrítico é, portanto, insustentável em termos lógicos; e uma vez que é possível provar isto com argumentos puramente lógicos, é possível demonstrar a invalidade do racionalismo acrítico recorrendo à sua principal arma, os argumentos.”

Pressuposto Colossal -  E Popper acrescentou: “Podemos generalizar esta crítica. Como todos os argumentos devem proceder de pressupostos, é evidentemente impossível exigir que todos os pressupostos se baseiem em argumentos. A exigência de muitos filósofos de que não partamos de qualquer pressuposto e nunca pressuponhamos nada acerca da ?razão suficiente?, e mesmo a exigência menos insistente de que partamos de um conjunto muito pequeno de pressupostos (?categorias?), são ambas inconsistentes nesta formulação. Porque essas mesmas exigências assentam no pressuposto verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou apenas com alguns pressupostos, e mesmo assim obter resultados válidos.”

Busca de Certeza - Também Michael Oakeshott viu no racionalismo dogmático a origem do relativismo. Chamou-lhe a política de fé, por oposição à política de cepticismo, sendo a primeira denominada também política racionalista, ou política da perfeição. Atribuiu a Descartes e Bacon a origem do racionalismo dogmático: “O objectivo de Descartes, tal como o de Bacon, é a certeza. O conhecimento seguro só pode surgir numa mente esvaziada: a técnica da investigação começa com uma depuração intelectual. O primeiro princípio de Descartes é ?de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse évidemment être telle, c?est à dire d?eviter soigneusement la précipitation et la prévention?, de bâtir dans un fonds qui est tout à moi?, e diz que o investigador é ?comme un homme qui marche seul et dans les ténèbres? » (em francês, no original inglês de Oakeshott).

Falsa Abertura -  Oakeshott mostra como por detrás da aparente “abertura de espírito” do racionalista (o racionalista acrítico e total, como teria dito Karl Popper) se encontra a sua busca obsessiva da certeza e a sua muito dogmática (e muito pouco “aberta”) incapacidade de viver com a incerteza, ou com o conhecimento falível e experimental inerente às tradições descentralizadas, ao hábito ou ao simples common sense: “O cerne da questão é a preocupação do Racionalista com a certeza. Para ele, técnica e certeza são indissociáveis porque o conhecimento exacto é, para ele, conhecimento que não precisa de ir além de si mesmo para se saber certo? Por exemplo, a superioridade de uma ideologia em relação a uma tradição de pensamento deve-se à sua aparente autonomia. É mais fácil ensiná-la a uma mente vazia; e se for ensinada a alguém que já acredita em qualquer coisa, a primeira coisa que o professor deverá fazer é administrar um purgante, certificar-se de que todos os preconceitos e ideias preconcebidas foram eliminados, construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.”

Começar do Nada -  “Construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta”, diz Oakeshott acerca da atitude do racionalista. Ora é exactamente desta forma que Karl Popper descreveu a atitude de um racionalista dogmático: “Não estou interessado na tradição. Quero julgar tudo pelos seus próprios méritos; quero conhecer os seus méritos e deméritos, e quero fazê-lo o mais independentemente possível de qualquer tradição. Quero julgar com o meu próprio entendimento e não com o entendimento de outros que viveram há muito tempo.” Karl Popper argumentou que é impossível substituir todo o conhecimento herdado por novo conhecimento alegadamente fundado “dans un fond qui est tout à moi”, para usar a expressão de Descartes. Isso significaria substituir em uma ou duas gerações tudo aquilo que amadureceu gradualmente ao longo das gerações. Recordemos mais uma vez o que disse Popper a este respeito: “É uma questão muito simples e decisiva, que no entanto poucas vezes é suficientemente entendida pelos racionalistas – que não podemos começar do nada; que precisamos de usar os conhecimentos científicos daqueles que vieram antes de nós. Se começássemos do nada, quando morrêssemos nem teríamos chegado aonde chegaram Adão e Eva (ou, se preferirem tão longe como o homem de Neanderthal). Na ciência queremos progredir, e isto significa que temos de nos manter nos ombros dos nossos predecessores.”

Chegar ao Nada -  Tal como na ciência, também no âmbito dos padrões morais e de comportamento não é possível começar do nada. A busca da certeza sem pressupostos – a ambição de começar do nada — também aqui conduzirá a que cheguemos ao nada. Isto significa que nenhum padrão – nem mesmo as sagradas palavras da Declaração de Independência americana, “os homens nascem iguais”, muito menos o código inglês da gentlemanship – nada no fim será poupado à busca da certeza sem pressupostos por parte do racionalismo dogmático. Então, enquanto a purga intelectual prossegue, à medida que todos os preconceitos e ideias preconcebidas são eliminados, o racionalismo dogmático aproximar-se-á triunfantemente do seu grande objectivo: estabelecer as suas fundações sobre a rocha cartesiana da ausência de pressupostos, ou, como escreveu Oakeshott, sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.

Relativismo Dogmático -  Mas a ignorância absoluta é o reino do relativismo absoluto. É o reino do nada, do “sem significado”, ou do “por que não?” e do “seja o que for”. Por outras palavras, a busca da certeza – que conduziu o racionalista dogmático à destruição de todos os pressupostos que ele não conseguia demonstrar – condu-lo, por fim, a uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não mencionar o dever ou a honra e, hoje em dia, até acerca do conhecimento científico. No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra “narrativa”. Se tudo é resultado da vontade arbitrária, por que é que a democracia liberal deve ser entendida como melhor do que as suas inimigas?

Vontade sem Entraves -  Eis como chegámos à destruição de todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionárias sem entraves. Discutiremos no próximo sábado se e como é possível voltar a aceitar limites morais.
Em busca de uma alternativa ao relativismo Em 1961, Karl Popper sustentou que “a principal doença do nosso tempo é um relativismo intelectual e moral, o segundo sendo, pelo menos em parte, baseado no primeiro” Karl Popper (Viena, 1902 - sul de Londres, 1994), foi um dos mais brilhantes filósofos do século 20 Discutimos no sábado passado os argumentos que sugerem a associação do relativismo com o racionalismo dogmático – sendo o primeiro uma espécie de consequência não intencional do último. Enfrentamos agora uma questão inevitável: será que o relativismo pode ser intelectualmente derrotado? Até ao momento, sustentei que os nossos autores criticaram o relativismo. Mas será que forneceram uma alternativa viável ao relativismo?

Padrões e Critérios -  Karl Popper abordou fundamentalmente este problema na adenda de 1961 (“Factos, Padrões e Verdade: Uma Crítica Suplementar ao Relativismo”) ao seu magnum opus de 1945, “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”. Neste vigoroso e denso ensaio, Popper começa por afirmar que “a principal doença do nosso tempo é o relativismo intelectual e moral, o segundo sendo, pelo menos em parte, baseado no primeiro”. Este relativismo caracteriza-se pela negação da existência de verdade objectiva ou pela afirmação da arbitrariedade da escolha entre duas asserções ou teorias. Para refutar este ponto de vista, Popper começa por estabelecer uma distinção entre padrões e critérios. Um enunciado é verdadeiro, diz Popper, se e apenas se corresponde ao factos. Esse é o padrão de verdade de um enunciado, e ele é totalmente objectivo: um enunciado é ou não verdadeiro, isto é, corresponde ou não aos factos, independentemente de sabermos se é ou não verdadeiro. Só este entendimento de verdade permite dar sentido ao conceito de erro. Cometemos um erro quando consideramos verdadeiro um enunciado que é falso, ou vice-versa. Em bom rigor, cometemos em regra erros sem termos consciência de que os estamos a cometer. Uma das razões principais pelas quais cometemos erros é não existirem critérios inteiramente seguros para descobrirmos em todas as situações se um enunciado corresponde ou não aos factos. Existe por isso uma diferença entre a falibilidade dos critérios e a objectividade do padrão de verdade. É devido a esta diferença que é tão importante a liberdade de crítica: é ela que permite detectar erros na utilização de critérios e, dessa forma, nos ajuda a aproximar da verdade objectiva. Esta atitude, que combina a defesa da existência de um padrão objectivo e absoluto de verdade com o reconhecimento da falibilidade dos critérios para identificar a verdade, foi denominada por Popper “absolutismo falibilista”.

Fatos e Padrões -  O absolutismo falibilista parece ser uma poderosa alternativa ao relativismo epistemológico, mas não é seguro que constitua uma alternativa ao relativismo moral. Popper reconhece que o conceito de “bem” ou de “justiça” é logicamente mais complexo que o conceito de “verdade” enquanto correspondência com os factos. Contudo, sustenta o autor, também podemos aprender com os nossos erros no domínio dos padrões morais e também podemos procurar padrões moralmente mais exigentes. Esta será mesmo uma das características fundamentais do liberalismo – que “se baseia no dualismo de factos e padrões no sentido em que acredita na procura de padrões sempre melhores, especialmente no domínio da política e da legislação”. A questão que permanece, no entanto, é a seguinte: enquanto o padrão de verdade é a correspondência entre um enunciado e os factos, qual é o padrão de bem? A resposta de Popper centra- -se na ideia de que podemos aprender com os nossos erros também no domínio moral: “Como aprendemos acerca dos nossos padrões? Como é que, neste domínio, aprendemos com os nossos erros? Primeiro, aprendemos a imitar os outros (a propósito, fazemo-lo por tentativa e erro) e assim aprendemos a considerar os padrões de comportamento como se consistissem em regras fixas, ?regras adquiridas?. Mais tarde verificamos (também por tentativa e erro) que cometemos erros – por exemplo, que podemos magoar as pessoas. Deste modo, aprendemos a regra de ouro; mas logo constatamos que podemos ajuizar erradamente da atitude de um indivíduo, da sua base de conhecimentos, dos seus objectivos, dos seus padrões; e podemos aprender com os erros cometidos a acautelar-nos, mesmo para além da regra de ouro.”

Patamar do Selvagem -  Friedrich A. Hayek apresenta um argumento acerca da natureza, origens e justificação das regras morais que afirma ser inspirado pela epistemologia de Karl Popper. Podem ser encontrados elementos deste argumento em todas as suas obras, mas são principalmente articulados no seu último livro, “The Fatal Conceit: The Errors of Socialism”. O autor relembra aqui que Popper critica a ambição de eli- minar todas as tradições que não podem ser racionalmente justificadas e reafirma que esta ambição tem sido “aquilo que todas as versões de cientismo advogaram – desde o racionalismo cartesiano ao positivismo moderno”. Hayek utiliza uma metáfora muito popperiana, afirmando que “se entretanto abandonássemos todas as conjecturas actuais cuja sua veracidade não pudéssemos provar, depressa retornaríamos ao patamar do selvagem que confia apenas nos seus instintos”. Ainda assim, isto deixa-o com a questão de como distinguir entre “conjecturas boas e más”, ou seja, bons e maus princípios morais. Hayek mantém que a origem das regras morais reside num processo evolutivo em que as práticas daqueles grupos que são preponderantes são copiadas e adoptadas por outros. Hayek explica que “essas regras novas não se difundirão porque os homens as entendem como mais eficazes, ou porque cuidam que conduzirão à expansão, mas apenas porque permitiram àqueles grupos que as praticam uma reprodução mais bem sucedida e a inclusão de forasteiros”. Contudo, tem o cuidado de sublinhar que estas regras não são comummente agradáveis, já que tendem a impor restrições ao comportamento das pessoas. A questão que emerge daqui é incontornável: se estas regras não são inteiramente compreendidas e se não são agradáveis, por que razão, e como é que estes grupos bem-sucedidos as mantêm?

Plurarismo -  Por sua vez, Isaiah Berlin deixou-nos uma dificuldade similar, senão maior. Por um lado, Berlin sublinhou a importância de “uma posição absoluta” tendo em vista a protecção da “área mínima de liberdade individual”. Esta posição absoluta, de acordo com Berlin, pode surgir de fontes distintas, sejam elas “direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural” sejam as exigências da utilidade ou dos “interesses permanentes do homem”. O ponto crucial é terem de ser amplamente aceites para fazerem parte do costume ou da opinião, de modo a suportarem “certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor”. Por outro lado, Berlin salientou que “os fins dos homens são múltiplos, e em princípio nem todos são compatíveis entre si”. Isto implica que “a possibilidade do conflito – e da tragédia – não pode ser totalmente eliminada da vida humana, pessoal ou social”. A partir desta concepção pluralista da variedade e da incomensurabilidade dos fins humanos, Isaiah Berlin derivou de boa fé uma certa medida de “liberdade negativa”, ou de “liberdade tal como Acton a concebeu”. Mas hoje em dia é amplamente apreendido que, se “o pluralismo for absoluto”, quer isto dizer, se o pluralismo não permitir qualquer hierarquia entre bens ou reivindicações rivais, então a liberdade torna- -se apenas mais um fim ou reivindicação – que, de acordo com um “pluralismo compreensivo”, não se pode dizer melhor do que a abolição da liberdade. Por outras palavras, se derivarmos a liberdade do pluralismo, e se o pluralismo for absoluto, então aquelas “fronteiras de liberdade que ninguém é autorizado a transpor” desaparecerão: tornar-se-ão apenas mais uma preferência arbitrária, uma daquelas “finalidades humanas (que) são múltiplas, nem todos elas comensuráveis, e em conflito perpétuo entre si”.

Direito Natural -  Esta linha ténue entre o pluralismo de Isaiah Berlin e o mero relativismo é hoje em dia amplamente reconhecida. Foi assinalada de forma crítica, embora afável, por Leo Strauss no seu ensaio “O Relativismo”. Isto poderia levar-nos a pensar que Leo Strauss foi, entre os nossos autores contemporâneos, aquele que forneceu de forma mais adequada uma alternativa ao relativismo. Sustentou que a democracia liberal só poderia resistir ao relativismo se retornasse às suas raízes pré–modernas, às raízes do direito natural clássico e à filosofia política clássica. Mas poderemos realmente regressar ao direito natural clássico? E será que ele fornece realmente uma resposta ao relativismo moderno? As respostas de Leo Strauss a estas questões foram extremamente complexas e, em certa medida, fugidias. Desenvolveram-se várias escolas de interpretação, contendendo, por vezes de forma extrema, umas com as outras. Podemos perguntar a nós mesmos se ele realmente acreditava que a filosofia era capaz de fornecer a resposta ao relativismo. Alguns intérpretes afirmaram que a filosofia não o conseguiria e que os filósofos, sendo conscientes disto, não deveriam tentar dirigir filosoficamente a cidade. Pelo contrário, devem simplesmente estar conscientes de que a democracia liberal é o regime mais amistoso com a filosofia no mundo moderno, dado que é aquele que permite aos filósofos prosseguirem o seu inquérito em liberdade – desde que estes tenham o cuidado de não divulgar as suas conclusões ao grande público.

Liberdade como conversação - Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora, ou a um específico “sábio legislador”. A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação Darwin soube conciliar a racionalidade da sua teoria com a espiritualidade inerente aos seres humanos Pode o relativismo ser derrotado? Discutimos esta pergunta no sábado passado e observámos que os autores estudados ao longo destes ensaios não forneceram uma resposta inteiramente definitiva. Porém, talvez tenham sugerido algumas referências seguras para enfrentar a pergunta. Três referências Em primeiro lugar, todos eles sustentaram a inviabilidade do relativismo. Os enunciados de facto ou os padrões de comportamento não podem ser equivalentes ou arbitrários, porque diferentes enunciados ou padrões produzem diferentes consequências. Estas consequências não são equivalentes entre si. Em segundo lugar, os nossos autores convergiram na necessidade de defender uma esfera de inviolabilidade em torno da pessoa. Se não existir protecção da vida e da liberdade de cada pessoa, não existirão barreiras ao exercício do poder arbitrário. O respeito pela vida e pela liberdade de cada um geram uma presunção favorável à propriedade privada e aos contratos consensuais entre adultos responsáveis. A isto chamaram os nossos autores “the rule of law”, o Estado de direito. Em terceiro lugar, observámos que todos os autores estudados partilham uma visão crítica do racionalismo dogmático. Por outras palavras, todos eles são críticos da concepção continental ou cartesiana de Razão, com R maiúsculo. Esta concepção cartesiana, com diria Popper, atribui à Razão “a assunção verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou com muito poucos, e mesmo assim obter resultados válidos”. Conversação Neste sentido, pode ser dito que a resposta dos nossos autores ao relativismo é fundamentalmente negativa. Afirmam que o relativismo é insustentável, mas que a Razão não pode fornecer uma resposta definitiva ao relativismo, precisamente porque não é essa a forma de operar da razão: não faz tábua rasa e começa de novo. A razão que os nossos autores têm em mente opera aos ombros do conhecimento herdado e da sabedoria herdada. E aborda de forma crítica os problemas ou perguntas específicas que vão emergindo. Sugere então novas soluções e submete-as a teste, através de um processo de tentativa e erro. Isto dá origem a um diálogo, a uma controvérsia, a uma competição ou uma conversação entre concepções concorrentes e tradições concorrentes. Mas a nenhuma é permitida uma supremacia absoluta, de tal forma que possa eliminar todas as concepções concorrentes e redesenhar toda a sociedade de acordo com as suas concepções particulares. O que acabamos de descrever sucintamente corresponde de facto à vida – política, económica, cultural e também moral – de uma sociedade livre, onde decorre uma conversação permanente: não apenas entre concepções concorrentes actuais, mas também entre o passado, o presente e o futuro, tal como sublinharam Oakeshott e Burke. Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora ou a um específico “sábio legislador”. A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação. Fé e razão Esta é precisamente a expressão política da crítica filosófica do racionalismo dogmático que, de diferentes modos, foi desenvolvida por Popper, Hayek, Berlin, Oakeshott, Strauss e Dahrendorf. Poder-se-ia dizer que esta foi uma das preocupações constantes de Edmund Burke, a quem forneceu o móbil para o seu primeiro livro, “A Vindication of Natural Society”. Esta concepção é ainda particularmente evidente em Tocqueville, quando o autor procura descrever a distinção mais importante entre a América e a França: “Já disse o suficiente para iluminar com exactidão o carácter da civilização anglo-americana. É o resultado (e deve-se manter isto sempre em vista) de dois elementos distintos, que noutros locais estiveram em desacordo frequente, mas que os americanos realizaram através de, em certa medida, uma junção e uma combinação admirável de ambos. Refiro-me ao espírito de religião e ao espírito de liberdade [...] Deste modo, no mundo moral tudo é classificado, sistematizado, previsto e decidido com antecedência; no mundo político tudo é debatido, discutido e incerto. Num deparamo-nos com uma obediência passiva, apesar de voluntária; no outro, com uma independência desdenhosa da experiência e desconfiada em relação a toda a autoridade. Estas duas tendências, aparentemente tão dissonantes, estão longe de ser conflituosas: ambas progridem em conjunto e apoiam–se mutuamente. [...] A liberdade considera a religião sua parceira em todos os seus combates e triunfos, o berço da sua infância e a fonte divina das suas reivindicações. Entende a religião como uma garantia da moralidade, e a moralidade como a melhor segurança da lei e o penhor mais certo da duração da liberdade.” Gânglio central Uma concepção notavelmente semelhante foi apresentada por Élie Halevy, e retomada por Gertrude Himmelfarb, acerca da Inglaterra vitoriana: “O utilitarismo, o darwinismo, o positivismo, o racionalismo, o criticismo bíblico e o humanismo ateu – nenhum destes conseguiu arruinar a moralidade, como alguns temiam, nem providenciar um ‘novo motivo’ para a moralidade, como aspiraram Macaulay e outros. Ao limite, o que amparou a ética vitoriana foi essencialmente aquilo que de início a inspirou – um evangelismo não-sectário e latitudinário. [...] Esse ‘gânglio central’ da vida moral pode bem ter sido o centro nevrálgico da história inglesa. Foi aqui que os irreconciliáveis foram reconciliados, que as paixões foram esfriadas, que os interesses e as ideologias foram silenciados. [...] O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a famosa expressão de Halevy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução.” Gentlemanship Este “gânglio central” da vida moral inglesa exprimiu-se naquilo que poderíamos designar por “um consenso ético pluralista”, cuja expressão é conhecida de todos e ainda hoje é associada aos ingleses, embora tenha caído em desuso e não seja considerada “politicamente correcta”: trata-se do código de conduta do gentleman. Reconhecidamente de inspiração cristã, o código do gentleman é no entanto suficientemente flexível e ambíguo para poder albergar diferentes tonalidades e, sobretudo, uma conversação entre tonalidades. Mas essas tonalidades entram em controvérsia, por vezes em choque, sobre um consenso comum: o de que o relativismo é uma atitude de bárbaros e de que, algures para além de cada um de nós, existe uma lei moral que nos impõe deveres que são independentes do nosso capricho. O reconhecimento da existência desses deveres – que não são concebidos por ninguém, não são produto da “vontade geral”, mas se impõem à vontade geral – o reconhecimento da existência desses deveres é o que distingue um gentleman. Ideia de dever Gertrude Himmelfarb recorda que, quando foi perguntado a Darwin quais eram as consequências da sua teoria para a religião e a moral, este respondeu que “a ideia de Deus está para além do intelecto humano, mas a obrigação moral do homem permanece a que sempre foi: cumprir o seu dever”. Macaulay, o grande historiador liberal e agnóstico, criticou o utilitarismo e defendeu a superioridade do cristianismo por este admitir a existência objectiva do dever. George Eliot, depois de todos os seus estudos sobre a filosofia alemã e francesa, acabou por regressar à sua religião original para tentar dar conta do mais importante facto da vida: “O evangelismo trouxe à palpável existência e acção [...] essa ideia de dever, esse reconhecimento de algo que tem de ser vivido para além da mera satisfação do eu, e esse algo constitui o gânglio central da vida moral.” Burke e Newman Está talvez na altura de recordar que esta ideia, de que o dever não decorre da vontade, era central em Edmund Burke. E foi Burke que nos deixou uma das mais belas imagens sobre a educação de um gentleman: “Ser educado num lugar de estima; não ver nada baixo ou sórdido desde a infância; ser ensinado a respeitar-se a si próprio: ser habituado à inspecção crítica do olhar público; [...] ter tempo para ler, reflectir, conversar; [...] ser ensinado a desprezar o perigo no cumprimento da honra e do dever; [...] possuir as virtudes da diligência, da ordem, da constância e da regularidade, e ter cultivado uma atenção habitual à justiça comutativa: estas são as circunstâncias dos homens que formam aquilo a que eu chamaria aristocracia natural [por contraste com aristocracia feudal], sem a qual uma nação não pode existir.” Estas palavras serviram de inspiração ao cardeal John Henry Newman, na sua obra hoje clássica “A Ideia de Universidade”: “É apropriado ser um gentleman, é apropriado ter um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, leal e desapaixonada, uma atitude nobre e cortês na condução da vida – estas são as co-naturais qualidades de um largo conhecimento, e são o objecto de uma Universidade.”
Duas culturas políticas O contraste entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa corresponde a diferenças entre duas grandes culturas políticas. A esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas. J. Adams, R. Sherman, T. Jefferson e B. Franklin apresentam a Constituição - John Trumbull (1756-1843) A existência de um “mistério inglês” tinha-me sido sugerida por Karl Popper, em conversa que aqui evoquei no ensaio inicial desta série, a 9 de Maio. Ilustrei esse mistério com a pergunta de Lorde Quinton: por que razão produziram as ideias de John Locke no século XVII inglês uma revolução predominantemente conservadora, ao passo que, quando no século seguinte atravessaram o Canal, produziram em França o efeito de álcool em estômago vazio? Sugeri que esta pergunta exprime a especificidade da tradição política anglo–americana, que também pode ser descrita pelo “milagre da Inglaterra moderna” de Gertrude Himmelfarb e Elie Halevy: que a Inglaterra tenha realizado todas as revoluções do mundo moderno sem recorrer à revolução. Encetámos então uma longa viagem através de vários autores que, de forma mais ou menos directa, se interessaram pelo mesmo mistério. Em seguida discutimos vários temas comuns às obras desses autores. Iniciamos hoje a apresentação de uma proposta interpretativa. Ela será desenvolvida neste e nos próximos quatro ensaios – que encerrarão esta série. Duas culturas políticas. Esta proposta interpretativa sublinha que o contraste entre a tradição anglo-americana e a tradição francesa, ou continental, assenta em diferenças fundamentais entre as culturas políticas dessas duas tradições. Por cultura política não pretendo designar uma doutrina política particular, como o socialismo, o liberalismo ou o conservadorismo. Também não me refiro ao ideário específico da chamada esquerda, ou da chamada direita, nem mesmo do chamado centro. Por cultura política pretendo designar algo que serve de base a essas divisões: algo que talvez pudéssemos designar como o idioma político, ou as categorias conceptuais, que fornecem as referências comuns ou o pano de fundo sobre o qual rivalizam as famílias políticas. Porque acredito que em todas as rivalidades políticas existem pressupostos comuns que de certa forma dão sentido a essas rivalidades. Direita e esquerda. Basicamente, gostaria de sugerir que as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa correspondem a diferenças entre duas grandes culturas ou tradições políticas. E gostaria de sugerir que as diferenças entre essas duas culturas políticas são mais importantes que as diferenças entre esquerda e direita ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. Diria mesmo que a esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita noutras culturas políticas. Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição francesa devem-se menos a características peculiares que a características comuns da esquerda e da direita em cada uma dessas tradições. Em suma, existem conceitos-chave que são partilhados à esquerda e à direita no interior de cada tradição política. Três conceitos-chave. Esses conceitos-chave são percepcionados de forma muito diferente, quer pela esquerda quer pela direita, quando se muda de tradição política. É ao conjunto desses conceitos-chave, desses pressupostos muitas vezes não explícitos, que chamo “cultura política”. Gostaria de sugerir que vale a pena observar comparativamente, em cada uma destas culturas políticas, três conceitos-chave: o conceito de revolução, o conceito de ordem social e o conceito de liberdade. Dois gumes. Antes de prosseguir, devo no entanto sublinhar um esclarecimento que me parece fundamental. No argumento que vou apresentar referir-me-ei a estas duas culturas políticas como ideais-tipo, para usar a consagrada expressão de Max Weber. Não pretendo por isso subsumir toda a riqueza de cada uma daquelas culturas políticas nos traços vincados que vou utilizar. Pela mesma razão, não pretendo que todas as características da cultura política inglesa, ou anglo-americana, sejam positivas, nem que todas as da cultura política francesa sejam negativas. Em boa verdade, como observou o meu amigo e mestre Seymour Martin Lipset, recentemente falecido, seria possível encontrar contrapartidas negativas para quase todos os traços positivos da cultura política anglo-americana [American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, Nova Iorque/Londres: Norton, 1996]. Se ela tem, no entanto, uma vantagem conclusiva, esta reside na recusa da utopia e no reconhecimento da imperfeição inerente a todo o empreendimento humano. Gostaria por isso que o meu argumento, certamente elogioso para a cultura política anglo-americana, fosse interpretado no quadro falibilista que ela tanto ajudou a fomentar.Revolução? Começando pelo primeiro conceito-chave, o de revolução, eu diria que ele talvez exprima de forma mais patente a diferença entre as duas culturas políticas. Na tradição francesa, a ideia de revolução está associada a mudança, a progresso, a abertura de espírito. Isso não significa, obviamente, que todas as revoluções mereçam a aprovação de todas as pessoas; mas significa que o ónus da prova recaia sobre aqueles que são contra uma determinada revolução – e que estes, ao tentarem criticar uma dada revolução, estão desde logo numa posição defensiva. Em França fala-se de revolução como sinónimo de progresso: revolução no conhecimento científico, revolução nas artes, nos costumes, na tecnologia, na economia. É mesmo provável que a expressão “Revolução Industrial”, inicialmente aplicado a Inglaterra, seja de origem francesa. Na verdade, não houve nenhuma “Revolução Industrial” em Inglaterra: houve apenas um longo processo de modernização económica, tecnológica e social, que deu origem ao que chamamos sociedade industrial. Mas essa transformação foi apenas um agregado de inúmeras transformações graduais, descentralizadas e não centralmente dirigidas, cuja génese pode aliás nem ter estado na chamada burguesia, mas na própria aristocracia que iniciou a intensificação da exploração agrícola. Os estudos mais recentes apontam mesmo para as origens medievais e católicas do capitalismo ocidental. Edmund Burke. Em Inglaterra, com efeito, o termo “revolução” é muito pouco utilizado e raramente com conotação positiva. Talvez um dos grandes responsáveis por este facto tenha sido Edmund Burke, o grande parlamentar whig irlandês que é dado como fundador do conservadorismo moderno, mas que, em Inglaterra, reúne a admiração de grandes figuras da direita e da esquerda. O percurso de Edmund Burke foi ele próprio muito difícil de qualificar politicamente. Tendo sido considerado o líder intelectual do partido whig (que poderíamos designar como liberal, no sentido de que se opunha aos Tories, os conservadores), Burke destacou-se como defensor dos colonos americanos, dos direitos dos católicos irlandeses, e como severo crítico da administração inglesa na Índia, acusando-a de desrespeitar os direitos dos povos nativos. Mais do que isso, Burke foi um crítico acérrimo do que designou por governo de corte do rei George III, e um dos primeiros teorizadores do papel dos partidos políticos parlamentares modernos, um dos quais deveria sustentar o governo e o outro a oposição. Só que, em 1789, quando todos esperavam que Burke desse o seu apoio à Revolução Francesa, como se inclinavam a fazer os seus pares liberais, ele desencadeou contra ela uma crítica feroz que ainda hoje constitui um clássico do pensamento político, as célebres “Reflexões sobre a Revolução em França”, publicadas em 1790. Arcaísmo revolucionário. A crítica de Burke à Revolução Francesa não é feita do ponto de vista da defesa do Antigo Regime ou do absolutismo real – o que seria impossível, dado Burke ter sido sempre um defensor do Parlamento e da limitação do poder político. Burke criticou a Revolução Francesa por ela querer instaurar um novo absolutismo, ainda mais ilimitado que o anterior. E, sobretudo, criticou a ideia de revolução redentora em termos extraordinariamente modernos: observou que todas as acções políticas provocam efeitos não intencionais e não previsíveis; disse que todos os planos centrais, designadamente os planos de mudança social, falham por não conhecerem a sabedoria descentralizada inerente aos pequenos pelotões e à vida local. Por outras palavras, Burke descredibilizou a própria ideia de revolução. Fê-lo, não do ponto de vista de manter tudo como está, mas do ponto de vista da maior inteligência da mudança gradual, descentralizada, por ensaio e erro. E foi aqui, na capacidade para adoptar a mudança gradual por ensaio e erro, que Burke situou a superioridade do regime parlamentar inglês. Revolução relutante. Esta ideia da superioridade da mudança gradual relativamente à mudança revolucionária passou a fazer parte do património comum daquilo que designei por cultura política inglesa. De forma imperceptível, esta ideia foi adoptada pela república americana, ainda que esta tenha sido aparentemente fundada por uma revolução. Só que – tal como na Inglaterra de 1688, e ao contrário da França de 1789 – a revolução americana de 1776 foi uma revolução relutante. Foi uma revolução liberal, sem dúvida, mas também conservadora, por comparação com a francesa. Visou restaurar liberdades e garantias constitucionais ancestrais, e não delinear uma nova sociedade a partir do zero. No próximo ensaio desenvolveremos esta diferença crucial.
Ordem social: livre ou comandada? Na tradição francesa é difícil conceber que uma ordem social possa funcionar melhor sem ser centralmente dirigida, ou minuciosamente regulada.Na comparação entre a cultura política anglo-americana e a cultura política continental, o segundo conceito-chave é o de ordem social. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, recebe no Palácio do Eliseu, Paris, o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown [No sábado passado, discutimos o primeiro conceito-chave, o de revolução].Na tradição continental, sobretudo francesa, quando se pensa em ordem social pensa-se numa ordem que alguém terá organizado: um sábio legislador, um grupo fundador, enfim, alguém ou algum grupo que organizou alguma coisa com um propósito determinado.

Interação - Na tradição de língua inglesa, pelo contrário, a ideia de ordem social, de instituição social, não está necessariamente associada ao desígnio central de ninguém. Nesta tradição, é frequente ouvir recordar que algumas das mais indispensáveis instituições sociais não foram centralmente desenhadas, simplesmente emergiram como resultado da interacção. É o caso da família, uma instituição espontânea que emerge da interacção, tal como é o caso da troca, ou do mercado, que também não são desenhados por ninguém. Finalmente, é o caso da língua – a língua inglesa, ou a portuguesa, ou até mesmo a francesa – que não foram centralmente desenhadas.

Esperanto -  Curiosamente, a única língua que foi desenhada, o esperanto, não é falada por ninguém. Ninguém se sente confortavelmente em casa nessa língua – precisamente porque, em vez de ter emergido, ela foi centralmente desenhada. E o mesmo acontece com o mercado e com a família: quando a engenharia política procura redesenhar a economia ou a família, o que produz são economias ou situações familiares disfuncionais. Na tradição francesa, apropriadamente também chamada cartesiana, é difícil aceitar ou conceber que uma ordem social possa funcionar melhor sem ser centralmente dirigida, ou minuciosamente regulada.

Informação Tácita -  Na cultura política inglesa, pelo contrário, a presunção é a de que, até prova em contrário, os arranjos locais e descentralizados são preferíveis aos planos ou regulamentos centrais. E são preferíveis, não porque são tradicionais e porque a tradição é sempre melhor do que a mudança, mas porque os próprios arranjos locais são realidades vivas em que há um permanente ajustamento entre tradição e mudança. Esse ajustamento local contém uma quantidade de informação tácita, não escrita, que reflecte as realidades locais e que nunca poderia ser conhecida, muito menos levada em conta, por uma entidade central. Sobre este conceito de ordem descentralizada resultante da interacção convergem os extensos trabalhos de F. A. Hayek sobre “ordem espontânea”, de Michael Oakeshott sobre “associação civil” e, até certo ponto, de Karl Popper sobre “sociedade aberta”.

Quando Começou Oxford? - Esta preferência pela descentralização e pelo ajustamento gradual com base na experiência é tão arreigada em Inglaterra que, por vezes, dá origem a situações peculiares, dificilmente compreensíveis no continente. A Universidade de Oxford, por exemplo, orgulha-se ainda hoje de não saber a data precisa da sua fundação, algures no século XII – precisamente porque não foi centralmente desenhada, mas emergiu de colégios descentralizados. Três colégios – Balliol, University College e Merton – disputam entre si a primazia na fundação. E todos os colégios mantêm com zelo a sua autonomia em face dos poderes centrais da Universidade, que, em boa verdade, são extraordinariamente reduzidos. São os colégios que admitem os alunos e não a Universidade. Os turistas que insistem em visitar a Universidade de Oxford em vez de apenas visitarem colégios ficam surpreendidos quando são confrontados com pequenos edifícios anódinos, basicamente de serviços administrativos, em flagrante contraste com os magníficos colégios e respectivos jardins. Este é outro sinal distintivo da cultura política de língua inglesa: a preferência pela descentralização e pela evolução descentralizada, e a desconfiança em relação a grandes planos centralizados.

Crença na Revolução - Vale a pena observar a ligação entre esta preferência pela evolução descentralizada e o primeiro conceito-chave que discutimos no sábado passado, a animosidade relativamente à ideia de revolução. A revolução supõe uma crença ardente na possibilidade de mudar centralmente as coisas para melhor. Mas a preferência pelos arranjos locais contém um grande cepticismo relativamente a planos centrais, logo, a mudanças revolucionariamente dirigidas. Não existe aqui uma animosidade intrínseca relativamente à mudança, mas apenas à mudança centralmente, ou externamente, desenhada. Nos arranjos locais, existe um permanente diálogo entre tradição e mudança, não existe apenas tradição. Só que esse diálogo é ditado pelas conveniências internas de quem vive e conhece as circunstâncias locais – não é ditado por planificadores externos, ou por visões generalistas acerca de um futuro radioso.

Na Minha Casa -  Um conhecido ditado inglês – “an Englishman’s home is his castle” – exprime muito bem esta ideia de mudança gradual e descentralizada. Se a casa de um inglês é o seu castelo, isso quer dizer basicamente que ninguém deve intrometer-se na sua casa. Mas não está dito que essa casa permanecerá inalterada para todo o sempre. O que está dito é que ele saberá encontrar as mudanças necessárias para a tornar mais conveniente, mais confortável, e não aceitará que essas mudanças sejam centralmente ou externamente dirigidas por visionários vanguardistas, políticos activistas ou, já agora, por arquitectos autoritários. Este ponto leva-nos directamente ao terceiro conceito-chave, o de liberdade. Muito foi escrito sobre este assunto e apenas podemos aqui aflorar o tema. Recordarei, no entanto, a famosa palestra de Isaiah Berlin sobre os dois conceitos de liberdade (ensaio de 11 de Julho), para dizer que um desses conceitos é profundamente característico da cultura política inglesa: o conceito de liberdade negativa, ou liberdade como ausência de coerção intencional por terceiros.

Leve and Let Live -  A liberdade não tem aqui um conteúdo substantivo: não é libertação através da razão, não é conformidade com um determinado padrão de comportamento julgado “mais livre”, é simplesmente usufruto de um modo de vida pacífico, sem intromissão de terceiros. Este entendimento é usualmente resumido na expressão “live and let live”. Este conceito de liberdade coloca certamente muitas dificuldades, designadamente a da complacência com modos de vida desviantes, ou excêntricos, o que, na cultura inglesa, tem uma certa conotação positiva. Mas distingue-se por uma enorme vantagem política: resiste a qualquer tentativa autoritária de “obrigar os homens a serem livres”, para usar uma famosa expressão de Jean-Jacques Rousseau. Na cultura política inglesa, esta expressão não faz sentido. Podemos obrigar os homens a respeitar a liberdade dos outros, e podemos lamentar ou criticar o mau uso que os homens fazem da sua liberdade. Mas obrigá-los a serem livres não faz, em regra, sentido.

Consciência da pessoa - No entanto, no continente europeu, muitas perseguições contra a livre consciência das pessoas – designadamente contra a liberdade religiosa – foram conduzidas em nome da liberdade e até do liberalismo, por causa de uma interpretação demasiado ampla do conceito de liberdade. A liberdade foi muitas vezes abusivamente interpretada como libertação de um indivíduo de crenças, ou convicções, ou tradições que o alegado libertador considera opressoras. Pelo contrário, na tradição inglesa, liberdade não começa por ser definida pelo libertador: tem de ser basicamente definida pelo libertado. Isso significa que a liberdade é basicamente ausência de coerção intencional por terceiros. A liberdade começa, por isso, na liberdade da pessoa e da sua consciência.

Casamento Gay -  Muitos exemplos poderiam ser dados para esta diferença fundamental entre a tradição anglo-americana e a continental. Para dar alguma actualidade a estes ensaios, poderíamos citar o dos casamentos homossexuais. É uma típica ilustração de um profundo arcaísmo intelectual, mascarado de grande modernidade. Em Inglaterra, o assunto foi pacificamente resolvido através de um contrato específico: “civil partnerships”. A ideia é clara. Se um modo de vida reclama protecção legal, e se não produz danos a terceiros, a presunção é-lhe favorável, em princípio e até prova em contrário. Mas é de todo impensável que esse modo de vida imponha as suas concepções particulares a modos de vida preexistentes que não partilham dessas concepções – como é o caso do casamento heterossexual. Por isso (e porque a família heterossexual é uma instituição social espontânea, cuja utilidade social está amplamente demonstrada), o casamento continua reservado para a união entre um homem e uma mulher.

Pares Mistos -  Em contrapartida, a defesa da igualdade entre casamento hetero e homossexual é tipicamente continental e jacobina. Visa “libertar” os casais heterossexuais de um modo de vida e de uma visão do mundo em que se sentem confortáveis – mas que a vanguarda considera ultrapassada. É como se os “pares mistos” no ténis passassem a ser igualados a “pares de qualquer tipo”, apenas porque “pares gay” se sentiam discriminados. Na tradição inglesa, a proposta natural seria que os “pares gay” promovessem os seus próprios campeonatos. A concorrência mostraria depois quantos adeptos e espectadores iriam ter. E a evolução gradual mostraria, através da interacção, que outras soluções poderiam ou deveriam ser adoptadas. Rousseau e os seus discípulos continentais, no entanto, nunca poderiam aceitar esta ausência de “sistema” e de ardor revolucionário.
Democracia: liberal ou politicamente correcta? Na chamada “anglo-esfera”, o mundo de língua inglesa, a democracia liberal, entendida como governo limitado, não tem origem numa qualquer revolução moderna, nem visa reformular a sociedade segundo estes ou aqueles princípios modernos (ou pós-modernos). A democracia liberal, enquanto governo limitado, faz parte de uma velha tradição ocidental e visa sobretudo proteger os modos de vida já existentes. A propensão para seguir demagogos populistas é uma ameaça à democracia liberal Por que razão as ideias de John Locke produziram em Inglaterra e na América as revoluções conservadoras ou relutantes de 1688 e de 1766, respectivamente, e, em contrapartida, produziram na França de 1789 o “efeito de álcool em estômago vazio”? Esta foi a pergunta de Lorde Quinton que presidiu à exploração intelectual destes ensaios semanais desde 9 de Maio. Argumentei nos dois últimos ensaios que a resposta reside na existência de duas culturas políticas substancialmente diferentes: a anglo-americana e a francesa, sendo a segunda particularmente influente no continente europeu. Apresentei três conceitos-chave que, em meu entender, distinguem a cultura política anglo-americana: 1. Animosidade contra a ideia de revolução; 2. Preferência pelos arranjos descentralizados e pela concorrência entre eles; 3. Entendimento da liberdade basicamente como ausência de coerção intencional por terceiros.

Governo Limitado - A minha proposta para explicar estas diferenças cruciais consiste em dizer que, na chamada “anglo–esfera”, o mundo de língua inglesa, a democracia liberal foi sobretudo entendida como um sistema de governo limitado. A democracia liberal, entendida como governo limitado, não tem origem numa qualquer revolução moderna, nem visa reformular a sociedade segundo estes ou aqueles princípios modernos (ou pós–modernos). A democracia liberal, enquanto governo limitado, faz parte de uma velha tradição ocidental e visa sobretudo proteger os modos de vida realmente existentes. Esta tradição do governo limitado existia antes de Locke e não foi inventada por ele. Em boa verdade, pode ser politicamente referenciada à Magna Carta, de 1215, e culturalmente ao mandamento cristão de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Plurarismo -  Isto significa que a tradição do governo limitado não tem de ser deduzida dos princípios filosóficos primeiros de Locke – ou, já agora, destes ou daqueles princípios primeiros particulares. Por outro lado, isto significa que a tradição do governo limitado pode ser compatível com vários – mas certamente não com todos – princípios filosóficos primeiros particulares. A isto chamamos pluralismo filosófico da democracia. Gostaria de sublinhar que o objectivo principal deste governo limitado é a protecção de modos de vida realmente existentes e pacíficos (a protecção da vida, da liberdade e da busca de felicidade, para usar as célebres palavras da Declaração de Independência Americana). A isto chamamos pluralismo de modos de vida democráticos.

Monismo Racionalista - Pelo contrário, na Europa continental, sobretudo devido à Revolução Francesa, de 1789, a democracia liberal foi apresentada, em larga medida, como a expressão política de um projecto racionalista, um “modelo” para uma sociedade radicalmente nova. Este “modelo” (“blueprint”) foi inspirado por aquilo que Karl Popper, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin e Ralf Dahrendorf denominaram “racionalismo dogmático”, que Leo Strauss designou por “racionalismo moderno”, e que Michael Oakeshott cunhou apenas com o nome de “racionalismo”, ou “política de fé”, ou ainda “política de perfeição”. Por outras palavras, enquanto em Inglaterra e na América a democracia liberal surgiu como uma protecção dos modos de vida existentes, na Europa continental a democracia foi associada – quer pelos seus críticos, quer por muitos dos seus impulsionadores – a um projecto de alteração dos modos de vida existentes com vista a atingir o “modelo” de uma sociedade outra, desenhada pela “Razão”.

A Razão Contra as Pessoas -  Este projecto pode ter vários modelos como propósito, ou como alvo – a secularização, a modernização dos costumes, a igualdade económica, a neutralidade moral, etc. A sua principal característica é uma atitude adversarial, revolucionária, relativamente aos modos de vida existentes. Para dizê-lo sem artifícios, esta atitude adversarial resulta principalmente do facto de esses modos de vida já lá estarem, já existirem. São fundados no hábito, ou na tradição, ou na conveniência, ou em “attachments” particulares de que, como brilhantemente captou Oakeshott, as pessoas simplesmente gostam de usufruir. “Stay with me because I am attached to you”, disse Oakeshott, para exprimir este apego inteiramente natural e legítimo das pessoas a modos de vida que lhes são familiares.

Álcoól em Estômago Vazio -  Este apego a modos de vida familiares – cuja protecção, na tradição anglo-americana, é o primeiro dever do governo limitado – não é aceitável, nem sequer compreensível, pelo racionalismo continental. E não é aceitável porque esses modos de vida não foram concebidos pela “Razão” (com R maiúsculo). Por outras palavras, esses modos de vida não podem ser demonstrados por recurso aos princípios filosóficos primeiros que os racionalistas atribuem à democracia moderna. Daqui nasceu a trágica oposição continental entre passado e futuro, tradição e mudança, democracia e modos de vida, ou visões do mundo, pré-existentes ou pré-modernas. Daqui nasceu o efeito do álcool em estômago vazio, de que falava Lorde Quinton.

Consequencias Políticas - Devem ser destacadas três consequências políticas desta distinção entre a tradição anglo-americana e a continental. Em Inglaterra e na América, um compromisso político com a democracia não implica uma uniformidade de concepções sobre temas de filosofia, moralidade ou políticas públicas: as concepções rivais competem entre si, quer entre as elites, quer entre os eleitores.
PRIMEIRA CONSEQUÊNCIA Acresce que esta competição é amplamente encorajada por sistemas eleitorais que não são integralmente dependentes das listas partidárias, e em que existe uma ligação personalizada entre eleitos e eleitores. Pelo contrário, na Europa continental, tendem a ser fomentados um monopólio e uma uniformidade elitista através de uma compreensão enganosa de democracia – a que podíamos chamar, benevolentemente, uma “compreensão progressista” – e através de sistemas eleitorais sustentados nas estruturas partidárias. Isto tende a criar um fosso entre as elites políticas e os seus eleitores. As primeiras tendem a ignorar os interesses e as visões do mundo dos seus eleitores, enquanto os últimos tendem a sentir-se alienados dos seus representantes.

Le Pen e Bloco de Esquerda - Entre as graves ameaças que isto apresenta à democracia liberal, duas têm de ser referidas: o vanguardismo politicamente correcto (ou o “despotismo da inovação”, como diria Burke) por parte das elites; e a propensão para seguir demagogos populistas radicais e antidemocráticos por parte de sectores significativos do eleitorado. Foi o caso de Le Pen, em França, ou actualmente do Bloco de Esquerda, entre nós.

Segunda Consequencia -  A atmosfera moral das democracias europeias inclinou-se e inclinar-se-á ciclicamente para o relativismo. Os democratas europeus tiveram e continuarão a ter enormes dificuldades para fazer face ao relativismo. Isto pode ser explicado da seguinte forma: o relativismo é um produto inevitável do racionalismo dogmático moderno, que as elites europeias tendem a associar à democracia. O racionalismo dogmático reproduz-se a si próprio, e tende a tornar-se cada vez mais indomável, quando é separado do senso comum das pessoas comuns. A interacção de uma compreensão racionalista de democracia com sistemas eleitorais que afastam as elites dos seus eleitores promove inevitavelmente sonhos racionalistas indomáveis e uma atmosfera relativista indomável. Uma vez que a democracia no continente é essencialmente entendida como uma expressão de um projecto racionalista (dogmático), e o racionalismo dogmático conduz ao relativismo, os democratas que não são relativistas, na Europa, lutam desesperadamente por encontrar uma plataforma democrática contra o relativismo. Esta luta é, e continuará a ser, desesperada enquanto os democratas não relativistas continuarem a procurar uma plataforma dentro do racionalismo dogmático, ou aceitável para ele, isto é, para o racionalismo politicamente correcto.

Terceira Consequencia -  A terceira e mais séria consequência reside no enfraquecimento dos alicerces morais da democracia na Europa. O relativismo destrói os recursos morais e intelectuais que permitem compreender por que razão a democracia liberal é melhor que as alternativas. Por outras palavras, o relativismo tem uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não falar do dever ou da honra, e, hoje em dia, até do conhecimento científico. No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra “narrativa”. Se tudo é o resultado da vontade arbitrária, por que razão a democracia liberal e a civilização ocidental devem ser entendidas como melhores do que as suas inimigas?
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*João Carlos Mosqueiro Mendes Espada (n. 1955) é professor universitário, director do Instituto de Estudos Políticos - Universidade Católica Portuguesa, Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas e Professor Convidado da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais daquela Universidade. É doutorado em Ciência Política na Universidade de Oxford (1990-1994), onde foi orientado por Ralf Dahrendorf.